O “projeto anticrime”, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, dentre várias mudanças propostas como a polêmica ampliação da identificação genética (aqui), altera o Estatuto do Desarmamento a fim de criar o “Banco Nacional de Perfis Balísticos”, a ser previsto no art. 34-A da Lei n. 10.826/2003, senão vejamos:
Art. 34-A. Os dados relacionados à coleta de registros balísticos serão armazenados no Banco Nacional de Perfis Balísticos. § 1º O Banco Nacional de Perfis Balísticos tem como objetivo cadastrar armas de fogo e armazenar características de classe e individualizadoras de projéteis e de estojos de munição deflagrados por arma de fogo. § 2º O Banco Nacional de Perfis Balísticos será constituído pelos registros de elementos de munição deflagrados por armas de fogo relacionados a crimes, para subsidiar ações destinadas às apurações criminais federais, estaduais e distritais. § 3º O Banco Nacional de Perfis Balísticos será gerido pela unidade oficial de perícia criminal. § 4º Os dados constantes do Banco Nacional de Perfis Balísticos terão caráter sigiloso e aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial responderá civil, penal e administrativamente. § 5º É vedada a comercialização, total ou parcial, da base de dados do Banco Nacional de Perfis Balísticos. § 6º A formação, a gestão e o acesso ao Banco Nacional de Perfis Balísticos serão regulamentados em ato do Poder Executivo federal. (NR)
O texto em questão não apresenta, prima facie, qualquer impedimento de ordem constitucional ou convencional. Pelo contrário, mostra-se, em tese, como um aprimoramento do plexo informativo e útil à devida investigação criminal.
Importante, contudo, que se recorde a necessidade de máxima cautela com o processo de formação e o respectivo uso de qualquer banco de dados de natureza penal. Por aqui não seria diferente. A criação e operacionalização do banco nacional de perfis balísticos deve ser cuidadosamente acompanhada e fiscalizada. Sabe-se que, além das hipóteses de vício informativo por quebra da cadeia de custódia[1] (ex.: cadastro equivocado de estojos de munição em determinado caso por inobservância das regras técnicas de identificação, coleta e preservação das evidências criminais), há sempre um risco de desvio de finalidade, mau uso dessas informações (ex.: venda de dados cadastrados para terceiros).
Daí a grande importância não só dos contornos democráticos (respeito aos direitos fundamentais dos imputados) mas também das garantias quanto à integridade de dados (segurança procedimental) no âmbito da previsão legal originária e da correspondente regulamentação executiva. Indispensável, ainda, que se estabeleçam instrumentos adequados ao controle permanente desse banco nacional, inclusive métodos de auditoria constante do sistema, a fim de garantir sua operacionalização regular, isto é, conforme os objetos declarados pela normativa oficial (enunciação legal).
Em não sendo um registro que vincule compulsoriamente sujeitos (investigados ou condenados), mas apenas objetos de natureza balística, o principal dilema não parece ser estritamente jurídico, mas sobretudo operativo. Em outras palavras, o que se indaga é o seguinte: a propaganda legislativa virá acompanhada de recursos necessários à implementação efetiva da medida? Ou será mais um banco apenas normativo, e não informativo (concreto)?
Sabe-se que, com raras exceções, os órgãos de perícia oficial sofrem com a falta de estrutura, sendo incapazes de atender à demanda laboral ordinária. Portanto, a fim de que se tenha algum grau de efetividade quanto à medida em discussão, seria necessário que o tal “pacote anticrime” não apenas inovasse no campo normativo/abstrato, mas descrevesse o plano de execução e, mais importante, a correspondente fonte de custeio. Do contrário, também nesse ponto específico, apenas mais uma “legislação simbólica”[2].
Embora não seja esta a solução para os grandes dilemas da justiça criminal e da segurança pública nacional, motivo de considerável insatisfação coletiva[3], necessário reconhecer que, se adequadamente implementado o banco de perfil balístico em todo o país, haverá um avanço no sentido da necessária profissionalização investigativa criminal pela ampliação do compartilhamento de dados técnicos (ou científicos) na instrução dos casos penais.[4]
De fato, a instrução processual penal, especialmente na fase preliminar, necessita superar com urgência um amadorismo metodológico histórico, não raras vezes pautado exclusivamente por máximas da experiência individual do sujeito investigador, o que vai de encontro à própria garantia do devido processo (e procedimento investigativo) legal.
Conforme mencionado supra, o que falta no projeto apresentado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, nesse item, com em muitos outros, é a demonstração das medidas executivas programadas, estimativa de custos e a respectiva fonte dos recursos necessários. Sem esses dados concretos impossível qualquer discussão legislativa com seriedade.
[1] Conforme as lições de Geraldo Prado, “um dos aspectos mais delicados na temática da aquisição de fontes de prova consiste em preservar a idoneidade de todo o trabalho que tende a ser realizado sigilosamente, em um ambiente de reserva que, se não for respeitado, compromete o conjunto de informações que eventualmente venham a ser obtidas dessa forma. Trate-se de evitar o fenômeno da ‘break on the chain of custody'”. Explica, ainda, que a cadeia de custódia representa justamente o importante “dispositivo que pretende assegurar a integridade dos elementos probatórios”, de maneira que a sua inobservância pode gerar a inadmissibilidade da evidência quanto ao caso penal (PRADO, Geraldo. Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por meios ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, pp. 77 – 81).
[2] Segundo Marcelo Neves, a legislação simbólica pode ser definida “como uma produção de textos cuja referência à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico” (NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 30).
[3] Conforme pesquisa CNI/IBOPE, publicada em 2017, metade dos brasileiros considera péssima a situação da segurança pública no país e seis em cada dez afirmam que ela piorou em relação a três anos atrás (CNI/IBOPE. Retratos da Sociedade Brasileira: segurança pública. Brasília: CNI, 2017, p. 01). Nada muito diferente das constatações divulgadas pelo mesmo instituto, no ano de 2011, quando se tinha 51% da população considerando a segurança pública brasileira “ruim” ou “péssima” (CNI/IBOPE. Retratos da Sociedade Brasileira: segurança pública. Brasília: CNI, 2011, p. 09).
[4] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da Investigação Criminal: uma introdução jurídico-científica. Coimbra: Almedina, 2010 / VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. A Polícia do Estado Democrático de Direito. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
Por Leonardo Marcondes Machado (delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação).
FONTE: Revista Consultor Jurídico – publicado em 19 de março de 2019.