O ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu, em “homenagem à segurança jurídica”, remeter ao plenário da Corte o julgamento do recurso ordinário em habeas corpus no qual se discute, em síntese, se o empresário que deixa de recolher ICMS declarado comete ou não crime contra a ordem tributária.
Em sua decisão, Barroso destaca que o tema é controverso, “tendo sido objeto de discussão acirrada no Superior Tribunal de Justiça, com cinco votos pela tipicidade e três votos pela atipicidade da conduta (HC 399.109)”.
Não houve ainda manifestação expressa sobre a controvérsia por nenhuma das Turmas do Supremo Tribunal Federal.
“Dada a relevância prática da matéria, que afeta dezenas de milhares de contribuintes por todo o país, reputo que, em homenagem à segurança jurídica, sua apreciação deve ser realizada pelo Plenário da Corte. Remeto o presente recurso, portanto, ao julgamento do Plenário, nos termos do art. 21, XI, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”, destaca o ministro em sua decisão.
Até que o STF enfrente a matéria, “não é razoável que os recorrentes possam sofrer qualquer punição”, pondera Barroso, ao conceder liminar de ofício “apenas para determinar que não seja executada qualquer pena contra os recorrentes, seja de prisão ou restritiva de direitos, sem prejuízo do trâmite regular da ação penal contra eles movida”.
Empresários de Brusque
Os recorrentes são um casal de empresários da cidade Brusque, denunciado pelo Ministério Público do Estado por “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos” (2º, inciso II, da Lei número 8.137/1990).
A prática, para o MPSC, caracteriza apropriação indébita tributária.
Em julgamento datado de 28 de julho de 2016, o juiz da Vara Criminal de Brusque, Antônio Marcos Decker, decretou a absolvição sumária de ambos ante a “existência manifesta de causa excludente da culpabilidade” (Art. 397, II, do Código de Processo Penal).
O MPSC, então, apelou ao Tribunal de Justiça do Estado, que deu provimento ao recurso, afastando a absolvição e determinando o prosseguimento da ação penal contra os empresários.
TJSC e STJ mantêm ação penal
Em acórdão, o TJSC se posicionou no sentido de que “o não pagamento de tributo é fato típico e viola o bem jurídico de natureza difusa”, não se exigindo “qualquer finalidade específica de agir”. O mérito ainda não foi julgado pela corte catarinense.
Com o revés, o casal, representado pela Defensoria Pública do Estado, impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando, em linhas gerais, que “o não recolhimento de ICMS em operações próprias, devidamente declaradas ao Fisco, não caracteriza crime, mas mero inadimplemento fiscal”.
Mencionando julgados do próprio STJ, a defesa argumentou que “não há tipicidade formal no caso do não recolhimento de ICMS próprio, na medida em que não há substituição tributária, mas sujeição passiva tributária direta da pessoa jurídica. O contribuinte, no caso, é a própria pessoa jurídica (embora repasse o custo aos consumidores), e não o consumidor”.
Os ministros da Terceira Seção do STJ, por maioria, decidiram por afastar os argumentos trazido pela defesa do casal, indeferindo o habeas corpus.
Os ministros Reynaldo Soares da Fonseca, Antônio Saldanha Palheiro, Joel Ilan Paciornik e Felix Fischer acompanharam o relator, Rogério Schetti Cruz, no mesmo sentido de denegar a ordem. Foram vencidos os Jorge Mussi e Sebastião Reis Júnior, que acompanharam divergência inaugurada pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, concedendo o habeas corpus.
Registra trecho do acórdão da corte superior:
“É inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a instrução criminal.”
Segurança jurídica
Na avaliação de Suzana Soares Melo, advogada e doutora em Direito Tributário pela USP, o direito penal não deve servir como instrumento de coação para o recolhimento de tributos:
“Transformar em crime de apropriação indébita o mero inadimplemento do ICMS-operação própria é implementar uma verdadeira prisão por dívida de tributos, o que é vedado pela Constituição e por tratados internacionais.”
“O crime de apropriação indébita tributária pressupõe deixar de recolher valor de tributo ‘descontado ou cobrado’, na qualidade de sujeito passivo. Não se trata, portanto, de operação própria, mas de terceiros”, defende.
O próprio STJ já editou a Súmula 430, segundo a qual o inadimplemento de uma obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade do sócio-gerente.
Para Suzana, “tratar como crime o mero inadimplemento implicaria o contrassenso de dizer que o administrador não responderia com seus bens para o pagamento do tributo, porém responderia criminalmente pelo seu não recolhimento”.
“Há uma incerteza generalizada em relação à configuração do tipo penal de apropriação indébita tributária e o aguardado julgamento pelo Plenário do Supremo terá o condão de pacificar a questão, conferindo uma maior segurança jurídica aos cidadãos”, conclui a advogada.
Reunião no STF
Tendo em vista a sensibilidade da controvérsia, que demanda uma reflexão detida sobre a eficácia dos meios atuais de arrecadação tributária e os limites da política criminal-tributária, o ministro Roberto Barroso designou para o dia 11 de março (segunda-feira), às 16h, uma reunião a ser realizada na sala de sessões da 1ª Turma, com os representantes das partes, terceiros admitidos no processo e órgãos públicos diretamente interessados.
Cada participante poderá entregar memorial escrito e terá 10 minutos para apresentar seu argumento. “Além do debate jurídico, esta relatoria tem particular interesse no impacto da criminalização ou não sobre a realidade fática, criminal e tributária”, registra Barroso.
O ministro ordenou a intimação, para participar da referida reunião, a) o advogado dos recorrentes; b) o recorrido; c) um representante das Procuradorias-Gerais de Justiça dos Estados, a ser indicado pelo Colégio Nacional de Procuradores-Gerais; d) um representante das Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, a ser indicado pelo Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal; e) um representante dos secretários de fazenda dos Estados, indicado pelo Confaz; e f) um representante de cada um dos amici curiae.
FONTE: Jus Catarina – O portal da Justiça e do Direito em Santa Catarina – publicado em 15 de fevereiro de 2019.